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Filmes Episódicos: A Arte de contar várias histórias em uma só obra

O cinema, ao longo de sua história, sempre buscou inspiração em outras formas artísticas, especialmente no teatro e na literatura. Diretores como Stanley Kubrick frequentemente adaptavam obras literárias para o cinema, demonstrando esse intercâmbio constante entre as artes. Dessa troca nasceram diferentes maneiras de organizar narrativas cinematográficas.



Estruturas Narrativas no Cinema

Quentin Tarantino dirigindo em set de filmagem com câmera profissional, exemplo de diretor que utiliza estrutura episódica em capítulos
O diretor Quentin Tarantino durante filmagem, conhecido por organizar suas narrativas em capítulos, uma alternativa à estrutura clássica de três atos no cinema. Divulgação

Enquanto o teatro tradicionalmente organiza suas histórias em três atos e a literatura utiliza capítulos que variam conforme o tamanho da obra, o cinema adotou principalmente a estrutura clássica de três atos. No entanto, alguns diretores optam por organizar suas narrativas em capítulos, como Quentin Tarantino em seus filmes, criando uma abordagem mais próxima da literatura.

A organização em capítulos ou atos está diretamente relacionada às mudanças e pontos de virada que a trama propõe. Quanto mais divisões, mais pontos de mudança ou perspectivas diferentes são apresentados, não limitando o foco apenas ao protagonista.

O Conceito de Filmes Episódicos

Os filmes episódicos surgem quando, em uma única obra cinematográfica, são contadas múltiplas histórias. Podem ser três narrativas, como em “Contos de Nova York” (dirigido por Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen), ou até seis episódios, como em “Relatos Selvagens”.

Por que escolher uma estrutura episódica?

A principal motivação para essa escolha estrutural está no interesse dos realizadores em discutir e propor reflexões sobre um tema específico. Nesse formato, o tema que une todas as histórias torna-se mais importante que as tramas individuais.

Análise de “Relatos Selvagens”

Elenco de Relatos Selvagens (2014) com Rita Cortese, Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Oscar Martínez, Erica Rivas, Leonardo Sbaraglia e Julieta Zylberberg, exemplo de filme episódico argentino
O talentoso elenco de “Relatos Selvagens” (2014): Rita Cortese, Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Oscar Martínez, Erica Rivas, Leonardo Sbaraglia e Julieta Zylberberg interpretam personagens em situações extremas de vingança no aclamado filme episódico argentino.

O excelente filme argentino “Relatos Selvagens” exemplifica perfeitamente essa estrutura. O tema central é a vingança, apresentada através de um tom de humor trágico. Os roteiristas criaram seis histórias com pessoas em situações extremas, todas unidas por essa temática.

O primeiro episódio, “Pasternak”, apresenta um homem que reúne em um avião pessoas de quem não gosta, pilotando a aeronave em direção à casa de seus pais. Esta história estabelece o tom do filme: humor extraído do exagero e de situações inusitadas.

Por que “Relatos Selvagens” funciona?

O filme obtém sucesso por várias razões:

  • Coesão temática: Todos os episódios estão conectados pelo tema da vingança e pelo tom de humor trágico, criando sensação de unidade.
  • Narrativas completas: Cada episódio possui arcos bem definidos com apresentação, desenvolvimento e desfecho bem executados, funcionando como filmes independentes.
  • Potência dramática equilibrada: Todas as histórias levam os personagens às últimas consequências, não deixando espaço para o público imaginar desenvolvimentos adicionais.
  • Finais definitivos: Cada história tem um começo, meio e fim claros, evitando que narrativas inacabadas roubem a atenção das seguintes.

O filme foi indicado à Palma de Ouro e ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, permanecendo em cartaz por mais de um ano em São Paulo devido ao boca-a-boca positivo.

Desafios dos Filmes Episódicos

Equilíbrio na qualidade

O maior desafio é manter o equilíbrio qualitativo entre as diferentes tramas. Inevitavelmente, o público compara os episódios, tentando eleger o melhor. Isso torna o julgamento mais rigoroso, pois é mais difícil acertar múltiplas vezes do que apenas uma.Fidelidade ao tema

Manter-se fiel ao tema central enquanto se aborda de formas diferentes pode ser extremamente desafiador. É como construir múltiplos filmes diferentes, cada um com menor duração, mas todos precisando ter a mesma força narrativa.

Contos de Nova York (1989)

Francis Ford Coppola, Woody Allen e Martin Scorsese em 1989 durante filmagens de Contos de Nova York, exemplo de filme episódico desequilibrado
Os renomados diretores Francis Ford Coppola, Woody Allen e Martin Scorsese durante as filmagens de “Contos de Nova York” (1989), filme episódico que exemplifica os desafios dessa estrutura narrativa mesmo com grandes talentos envolvidos.

Este filme demonstra como mesmo grandes diretores podem enfrentar dificuldades com a estrutura episódica. Apesar de contar com Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen, o resultado final carece de coesão.

A única unidade aparente é a cidade de Nova York como cenário, tema muito amplo que deixa o resultado sem coesão efetiva. O problema pode estar justamente na diversidade de diretores, pois em “Relatos Selvagens” todas as histórias foram dirigidas pela mesma pessoa, criando maior sensação de unidade.

Análise dos episódios:

  • Primeiro episódio (Scorsese): Conta a história de um pintor apaixonado por sua assistente que não corresponde aos sentimentos. Bem dirigido, cria tensão dramática com poucas falas e ações.
  • Segundo episódio (Coppola): Uma garota rica cujo pai músico viaja pelo mundo. Considerado desastroso e aquém dos nomes envolvidos.
  • Terceiro episódio (Woody Allen): Um homem com relacionamento conturbado com a mãe devido à nova namorada. Após um show de mágica, a mãe desaparece. É o melhor episódio, seguindo a regra implícita de deixar o melhor para o final.

Vantagens da Estrutura Episódica

Múltiplas perspectivas

Permite oferecer diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema, não apenas de pessoas diferentes, mas de narrativas distintas dentro da história.

Histórias curtas no cinema

Poucos cinemas exibem curtas-metragens isoladamente. A estrutura episódica permite contar pequenos enredos dentro de um formato que segue o padrão mercadológico.

Possibilidades de produção

  • Colaboração: Diversos realizadores podem trabalhar juntos, cada um responsável por um episódio, similar ao que acontece na literatura quando autores se reúnem para criar livros colaborativos.
  • Flexibilidade temporal: É possível realizar o filme em momentos diferentes sem prejuízo para o conjunto.
  • Experimentação: Produtores podem reunir diretores diferentes para explorar como cada um abordaria o mesmo tema, como aconteceu em “The Mandalorian” da Disney.
The Mandalorian em cena de ação com sabres de luz, série da Disney que utilizou estrutura episódica com diferentes diretores
“The Mandalorian” da Disney exemplifica como a estrutura episódica permite que diferentes diretores contribuam com suas visões artísticas únicas para uma mesma obra, mantendo a coesão narrativa do universo Star Wars – Divulgação: Disney

A estrutura episódica oferece uma alternativa rica e complexa ao paradigma clássico de três atos. Quando bem executada, como em “Relatos Selvagens”, pode resultar em obras cinematográficas poderosas que exploram temas profundos através de múltiplas perspectivas narrativas.

O sucesso dessa estrutura depende fundamentalmente da coesão temática, do equilíbrio qualitativo entre os episódios e da capacidade de criar narrativas completas que funcionem tanto individualmente quanto como parte de um todo maior.

Vídeo sobre o conteúdo

Este texto foi desenvolvido com base no vídeo educativo do canal de Gustavo Cruz, especialista em análise cinematográfica e linguagem audiovisual. O conteúdo original explora de forma didática os conceitos de filmes episódicos, oferecendo exemplos práticos e análises detalhadas sobre essa estrutura narrativa no cinema. Para assistir ao vídeo completo e acessar mais conteúdo sobre storytelling e técnicas cinematográficas.

Felipe Bastos

Felipe Bastos da Silva é um jornalista e crítico de cinema brasileiro, fundador e editor do site Cinema e Afins. Desde a sua criação em 2007, o site se tornou uma referência na cobertura de cinema, séries, games e cultura pop, com uma abordagem aprofundada e jornalística. Ao longo dos anos, o site ganhou um público fiel e se firmou como uma fonte confiável para quem busca análises detalhadas e imparciais sobre as novidades do cinema e da cultura pop.

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